Quem chega à terceira idade conquista o direito de ser inútil, como os brinquedos feitos para divertir as crianças e encantar Deus. Os senhores e senhoras apaziguados com o tempo ganham o luxo de se equiparar às crianças divinas, que têm imaginação e criatividade.
POR RUBEM ALVES
Brinquedo não serve para nada. Objeto inútil. Útil é uma coisa que pode ser usada para se fazer algo. Por exemplo, uma panela. Ela é útil. Com ela se fazem feijoadas, moquecas e sopas. Uma escada também é útil: pode ser usada para se subir no telhado, para apanhar jabuticabas nos galhos altos, para trocar uma lâmpada. Um barco é útil: pode ser usado para atravessar um rio. Útil é o palito, a vassoura, o canivete, o pente, a camisinha, a aspirina, o lápis, a bicicleta, o computador e os meus dedos, que digitam as palavras que penso. Me convidaram para dar uma palestra para pessoas de terceira idade. Comecei minha fala de forma solene: “Então os senhores e as senhoras chegaram finalmente a essa idade maravilhosa em que podem se dar ao luxo de ser totalmente inúteis!” Pensaram que fosse xingamento, ofensa. E trataram, cada um, de me explicar a sua utilidade. E exigiram ser colocados na caixa das coisas úteis, onde estavam a vassoura, o papel higiênico e o serrote. Mas eu só queria que eles fossem colocados no mesmo baú onde estavam os brinquedos. Lá em Minas era assim que se valorizava o marido, dizendo que ele morava na caixa de coisas úteis: — O Onofre é assim caladão, desengonçado e sem-jeito. Mas marido melhor não pode haver. E sem defeito. Bom demais: não deixa faltar nada em casa... As mães, sagazes, sabiam que um casamento duradouro depende da utilidade das esposas. Como a expressão “esposa útil” não fica bem, substituíram-na por “esposa prendada”. Sabedoria das mães sagazes: esposa prendada, casamento duradouro, mãe viúva abrigada. Preparavam suas filhas para o casamento transformando- as em ferramentas-complementos de panelas, agulhas e vassouras. Cozinhar, varrer, costurar: esses eram os saberes necessários à formação de uma mulher útil. Nunca ouvi falar, não conheço, ignoro qualquer esforço no sentido de desenvolver nos homens e nas mulheres os seus potenciais de brinquedo. Afinal de contas, brinquedo é coisa inútil. O que se procura é um cavalo (ou égua) marchador, que não se espante com mau tempo, que fique amarrado no pau espantando moscas com o rabo sem relinchar: muito mais útil que um cavalo selvagem, lindo de se espiar, maravilhoso de se sonhar, mas impossível de se montar. Simetricamente, uma mulher submissa, caseira, trabalhadora, vale mais que uma mulher com idéias próprias que voa por lugares não sabidos. Quando o valor das coisas está na utilidade, no momento em que deixam de ser úteis são jogadas fora. Uma lâmpada queimada, uma caneta bic vazia, um saquinho de chá usado: vão todos para o lixo. Na hora de despedir os empregados é sempre a lei da utilidade que funciona. Quem é útil fica, quem é inútil vai. Muitas pessoas chegam mesmo a colocar Deus nesse rol de utilidades, ao lado desses objetos-ferramentas. Claro, a ferramenta mais potente, capaz de fazer tudo o que as outras não fazem: encontrar chave perdida, curar câncer, fazer o filho passar no vestibular, segurar o avião lá em cima, impedir acidente de automóvel, encontrar casa para alugar ou homem ou mulher com quem casar. Toda vez que alguém diz: “Graças a Deus”, está dizendo: “Ferramenta útil é esse Deus. Até agora fez tudo direitinho. As crianças, do jeito como saem das mãos de Deus, são brinquedos inúteis, não servem para coisa alguma. Assim são a Ana Carolina, a Isabel, a Camila, a Flora, a Ana Paula, a Mariana, a Carol, a Aninha... É compreensível. Deus, segundo Jacob Boehme, místico medieval, é uma Criança que só faz brincar. Ele não se dá bem com os adultos. Tanto assim que, no momento em que Adão e Eva pararam de brincar e ficaram úteis, Deus os expulsou do Paraíso. Fez isso não por não gostar deles, mas por medida preventiva: sabia que qualquer Paraíso vira inferno quando um adulto entra lá. Agora, para entrar outra vez no Paraíso, é preciso nascer de novo e virar criança. Aquela estória do livro de contabilidade de Deus, nas mãos de Pedro, na entrada do céu, é tudo invenção de adulto com cabeça de banqueiro. Na verdade, o que acontece é o seguinte. Na porta do Paraíso está aquela Criança que Alberto Caeiro descreveu num longo poema. Ela nem consulta livro nem pergunta nada. Só abre um baú enorme, onde estão guardados todos os brinquedos inventados e por inventar, e diz: “Escolha um para brincar comigo!” Quem ficar feliz e souber brincar entra. Mas muitos ficam bravos. Traziam, numa mala etiquetada de “boas obras”, todas as utilidades que haviam ajuntado. Queriam mostrálas a Deus Pai. Mas a Criança não se interessa pela mala. Os chegantes se sentem ofendidos. Desrespeito serem recebidos assim! Ficam desconfiados. Fecham a cara. Dizem que são pessoas sérias. Para isso foram à escola – para serem transformados de meninos em adultos. A Criança lhes sorri e lhes diz que, naquela escola, eles não passaram. Não podem entrar no Paraíso. Ficaram de DP. “Voltem quando tiverem deixado de ser adultos. Voltem quando tiverem voltado a ser crianças. Voltem quanto tiverem aprendido a brincar...”Rubem Alves, 72 anos, nasceu no interior de Minas Gerais e é escritor, pedagogo, teólogo e psicanalista.
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